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Histórias de pescador

O turista chegou, sentou na roda de pescadores, pegou uma água e ouviu histórias de rostos e nomes desconhecidos da pequena aldeia. Estava um pouco cansado e parecia agradável saber de uma vida da qual não pertencia.

De Catarina diziam ser uma apaixonada por navios. Uma faceira, sorridente e impaciente, que odiava ficar esperando no porto. Desde menina achava-se muito esperta e dizia saber tudo sobre o mar. Não havia sossego, havia espera e agonia. Olhar para o horizonte era mais do que um desejo, era uma sina. Sua sede de velejar era tão grande, que nunca conseguiu se apaixonar perdidamente por apenas um barco. Nunca, de fato, soube ser tripulante fiel. Abandonava o navio e chegava com histórias de grandes tempestades e rachaduras violentas. Mas o boato que corria de Catarina era que ela sempre fora a responsável pelos desastres – costumava boicotar sua própria tripulação assim que avistava outra âncora. Estava sempre disposta a pegar o bote. Sempre disposta a pular fora. Sem nenhum respeito. Não era sossegada na terra, mas também não se aquietava no mar. Às vezes, depois de rodar por outros navios, pedia abrigo nos velhos barcos que nunca a abandonaram – mesmo com todas as trapaças. Típico dela – dizia o velho pescador – enganar boas pessoas e digníssimos navios com o seu sorriso falso e encantador. Os mais justos acreditavam (e torciam) que um dia – quem sabe um dia – ela seria punida por tanta falta de cumplicidade. E ficaria no porto, sozinha, implorando uma vaga para os conhecidos capitães que um dia humilhou.

Como Julião era diferente, costumava dizer o mais robusto dos pescadores. Ele tinha tanto medo do mar. Gostava de sonhar com o dia em que velejaria por águas calmas, é bem verdade. Mas era metódico demais, pensativo demais, receoso demais. Quantos barcos legais foram embora e ele não se jogou sem pensar? Vezes demais. Todos gostavam da simpatia de Julião, mas temiam pelo seu futuro. Era um moço tão agradável, mas temia a tudo e a todos. Desconfiava da procedência dos barcos e tinha mania de análises detalhadas. O que ele desconhecia, todos comentavam, é que o navio perfeito nunca iria chegar. Por mais que esperasse, nunca iria aparecer. E ele – que tolo! – já chegava procurando os defeitos, ao invés de se focar nas qualidades. Não entendia que, talvez, tudo que as falhas precisavam era do seu afago… Coitado do Julião – tão bonito e tão sozinho. Os barcos já estavam cansados de procurá-lo. E o medo de sua família conservadora era apenas um: que ele ficasse para a sempre a ver navios…

Mas todas as fofocas da vez eram sobre Rosali. Há algum tempo aventurou-se dentro de uma canoa furada e nada que fizesse dava conserto. Não era por falta de tentativa. A moça sempre foi esforçada e dedicada. Insistia em uma canoa que, todos notavam, não tinha jeito (no fundo, ela própria sabia). Quantas moças já tinham desistido de velejar naquele traste? Quantas tentaram sem sucesso algum? Talvez por apego, quiçá pelo tempo, Rosali persistia. Inutilmente. Não era por falta de aviso. Todos queriam o melhor para ela e a alertavam sobre o barco furado e inútil – que, aparentemente, só queria afundar pessoas junto com ele. Alguns tentaram tirar a moça à força, mas nada adiantava. Ela acreditava piamente – e inocentemente – que todo seu esforço seria recompensado. O movimento era único, repetitivo e cansativo: com o balde na mão, ficava retirando toda a água que entrava. Um dia ela iria cansar, claro. Mas o que seria de Rosali? Ela conseguiria abandonar o barco errado ou seu destino seria morrer afogada?

Depois de comentarem a vida dos jovens da aldeia, cada pescador suspirava e lembrava, com um arrombo de saudade, do mar daqueles tempos – um mar que era cheio de respeito, de amor e que o ato de jogar a rede era coisa séria. Naqueles tempos, diziam, era difícil abandonar um barco. Subir a bordo para enfrentar esse grande mar da vida, significava virar um fiel tripulante pronto para enfrentar os dias de chuva grossa – juntos – e não só colher os belos dias de sol – juntos.

O relógio chamou o turista. Ele se despediu. Os rostos de Catarina, de Julião e de Rosali tinham ganhado formas, cores e expressões. Antes de entrar no carro, olhou para o mar e lembrou-se de algumas viagens inesquecíveis: um passeio rápido em uma linda canoa, uma viagem em um grande navio, um dia de sufoco em um barco perdido. Percebeu que não havia uma fórmula para navegar. Mas que era importante levar o respeito, a diversão e a dignidade. Uma bússola também não faria mal, para voltar quando tudo começasse a desandar. Entrou no carro e partiu. Sem antes, claro, corrigir o poeta: navegar é realmente preciso. Mas é preciso fazer viagens alegres. É imprescindível carregar na mala um bocado de amor próprio, a segurança de que não se deixará cair no fundo do poço e um monte de um tanto de sorrisos.

Já em casa, o turista pensou na vida dos três jovens e na saudade dos pescadores. Não entendeu. Para ele, afinal, não importa muito se vai pegar o barco ou ficar no porto, se vai fazer uma aventura em um domingo chato ou velejar pela eternidade e um dia a mais. O que importa é se divertir. E trazer das viagens sorrisos, lembranças e sabedorias para os próximos passeios. E aí quem sabe – um dia, nesse marzão imenso – não aparece vontade de ficar ali para sempre.

O resto, meu caros, é história de pescador.

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